MENSAGENS PASSIONISTAS

O SIGNIFICADO DA VIDA CONTEMPLATIVA HOJE

É sempre desafiadora a passagem do Evangelho do servo inútil (Lc 17, 7-10: como seres humanos, herdeiros da fraqueza dos nossos primeiros pais - "sereis como Deus" (cf. Gn 3,5) - estamos comumente, afetados pela tentação de sermos notados, valorizados, por aquilo que fazemos e somos. Até Rubem Braga, de certa forma, se surpreendeu em sua "insignificância" ao constatar que o humilde padeiro - tão dedicado quanto ele - a cada manhã, ao bater às portas das casas, levando o precioso fruto do seu trabalho noturno, se apresentava apenas como "ninguém": "não é ninguém. É o padeiro".

"Interroguei-o uma vez: como tivera a idéia de gritar aquilo? 'Então você não é ninguém?' Ele abriu um sorriso largo. Explicou que aprendera aquilo de ouvido. Muitas vezes lhe acontecera bater a campainha de uma casa e ser atendido por uma empregada ou outra pessoa qualquer, e ouvir uma voz que vinha lá de dentro perguntando quem era; e ouvir a pessoa que o atendera dizer para dentro: 'não é ninguém, não senhora, é o padeiro'. Assim ficara sabendo que não era ninguém...
Ah, eu era rapaz, eu era rapaz naquele tempo! E às vezes me julgava importante porque no jornal que levava para casa, além de reportagens ou notas que eu escrevera sem assinar, ia uma crônica ou artigo com o meu nome. O jornal e o pão estariam bem cedinho na porta de cada lar; e dentro do meu coração eu recebi a lição de humildade daquele homem entre todos útil e entre todos alegre; "não é ninguém, é o padeiro!" [1]
Em plena era tecnológica de imensas conquistas, mas também de muitos contrastes, em nossa sociedade, muitas vezes só se tem valor quem produz, quem gasta, quem está "ligado" (on line). Os monges e monjas habitualmente não frequentam os shopping centers, procuram estar na solidão (off line) e, aos olhos de muitos, não fazem nada...
Que significado teria, portanto, hoje a Vida Contemplativa? É ainda válido, mesmo na esfera eclesial, que existam pessoas inteiramente dedicadas à contemplação?
Um ser em busca do Mistério
Estive presente no 1º Encontro dos Contemplativos e Contemplativas do Brasil em Aparecida, no ano de 2012. Em meio a tantas constatações, percebeu-se a necessidade da vida Monástica se tornar mais visível, se tornar "notícia", em vista de um reflorescer vocacional. Mas quase paradoxalmente, percebíamos o quanto isto estava distante do nosso ser contemplativo, uma vez que escolhemos, ou melhor, fomos escolhidos por Deus para sermos homens e mulheres do deserto.
Na verdade, o que é um monge, uma monja, senão alguém envolvido por uma mística atração pelo Invisível, o Inefável, o Insondável. Nascemos nos Padres e Madres do deserto, como Antão, Arsênio, Maria Egípcia... que, abandonando a sociedade de então, abandonando a visibilidade, encontraram morada na solidão, na busca fascinante de Deus. Sua opção radical acordou a Igreja, gerou profecia, anunciou o Reino, testemunhou o essencial.
De qualquer forma, a vocação do monge, da monja, é simplesmente e só buscar a Deus. As outras coisas... se vierem a acontecer não deveriam inquietar o coração do Contemplativo, da Contemplativa, pois o seu olhar não pode se desviar do foco da sua ardente procura.
Thomas Merton assim já constatava:
Numa cultura materialista, o Monge se torna incompreensível, porque ele "não produz nada". Sua vida parece ser completamente inútil; nem mesmo os cristãos têm sido isentos dessa ansiedade por causa da aparente "inutilidade" do monge. Estamos acostumados com o argumento de que o mosteiro é uma espécie de dínamo que, embora não "produza" a graça, consegue esse bem-estar espiritual infinitamente precioso para o mundo. Os primeiros Pais do monaquismo não se preocupavam com tais argumentos, se bem que possam ter valor quando bem aplicados. Eles não sentiam que a procura de Deus fosse algo que necessitasse ser defendido. Ou, antes, viam que se os homens não tivessem, em primeiro lugar, consciência de que Deus deve ser procurado, nenhuma outra defesa do monaquismo adiantaria. [2]
Talvez, tanta "inutilidade" do monge, da monja, inquiete a sociedade e até a Igreja, mas por vocação e paixão, a essência do ser contemplativo não pode ser outra.
Ora et Labora
Mas o monge e a monja só rezam?
A história é testemunha dos inúmeros e louváveis feitos dos monges e monjas ao longo dos séculos. Eles foram os guardiões e cuidadores zelosos da cultura da Idade Média. A eles se atribuem a formação da Europa: o que não pensar daqueles monges cultivando as terras, derrubando matas, fundando cidades, etc.? Foram eles que reconstruíram o continente devastado pelas invasões bárbaras. O que não pensar da obra de São Columbano e seus discípulos que, estabelecidos o mais das vezes em regiões pantanosas ou florestais, as transformavam em centros ativos de desbravamento, colonização e reconquista cristã? Do mesmo modo, os grandes feitos dos santos monges Beneditinos: Gregório Magno, Agostinho de Cantuária, Beda, Egberto, Bonifácio e tantos outros? Também a obra pacificadora de São Bernardo de Claraval na Igreja e na sociedade do século XII?
"Os monges e os mosteiros tiveram um papel determinante na evangelização dos bárbaros na Idade Média. Cada mosteiro, com sua escola monástica, tornava-se um centro de vida religiosa e educacional. Ensinavam metalurgia, agricultura, introduziam novas culturas, foram pioneiros na tecnologia, realizavam descobertas científicas, aperfeiçoavam a paisagem europeia, socorriam os andarilhos e cuidavam dos náufragos. Os monges também preservaram a literatura, estudaram música e os escritos dos historiadores e filósofos."[3]
Lembremo-nos de Santa Hildegarda de Bingen médica, musicista, moralista política cujos livros de medicina com receitas extraídas da natureza são editados ainda hoje; de Gregor Mendel, Monge Agostiniano, pai da Genética; de Paolo Boccone, botânico de Cister, que contribuiu para os campos da medicina e toxicologia; de Guido de Arezzo, monge italiano, "criador" das notas musicais... isto para citar apenas alguns nomes.
Aos monges e monjas se devem a conservação da cultura na exigente e dedicada copiação dos livros. Ainda muito distante da criação da imprensa, nesta exigente arte, contando apenas com rústicos pergaminhos, tinteiros e penas eles salvaram a civilização do caos.
Os mosteiros foram também os embriões das primeiras universidades que surgiram: o que não pensar da obra educacional de Alcuíno, monge anglo-saxão beneditino?
Hoje, com o progresso levado adiante pelo mundo secularizado, toda esta projeção cultural dos Mosteiros talvez tenha se anuviado, da mesma forma que o papel dos religiosos na condução de escolas, hospitais, obras assistenciais. Não fazem, pois, parte da essência do ser religioso. O diferencial do ser cristão, do ser consagrado, está no fazer tudo para a glória de Deus: "quer comais, quer bebais, ou façais qualquer outra coisa, fazei tudo para glória de Deus" (ICor 10,31). Não somos os melhores músicos, os melhores escritores, os melhores padeiros, as melhores bordadeiras, os melhores apicultores, os melhores restauradores... talvez, nem mesmo os melhores orantes. Ainda bem que, fora dos nossos mosteiros, existam muitos profissionais melhores que nós!
Mas em tudo o que o monge e a monja faz está o selo da sua pertença exclusiva a Deus: seja no varrer, no cultivar a horta e o jardim, no cozinhar, o contemplativo olha para o Senhor que o sonda através da cortina, das grades: "Ei-lo: pára atrás de nosso muro, olha pela janela, espia pelas grades" (Ct 2,9). É até engraçada a história do grande Thomas Merton que passou uma manhã inteira apenas para distribuir três bolinhos no lugar de cada um dos mais de 200 monges da sua comunidade!
Nosso fundador, São Paulo da Cruz, dizia que deveríamos trabalhar "como aqueles santos monges antigos e Santos Padres, os quais trabalhavam com as mãos e com a mente e com o coração estavam elevados em Deus" [4]. O trabalho é, portanto, esta terapia onde o contemplativo, diversificando o seu modo de rezar, faz das obras outro meio para estar unido a Deus e aos irmãos. Desenvolve e até descobre os seus dons, partilha e comunga a luta dos trabalhadores, transforma em obras o seu amor pela comunidade, pela Igreja, dá a sua participação na grande hóstia que o mundo eleva a Deus, em Cristo.[5]
Que obras os Padres e Madres do deserto fizeram para serem tão importantes para as pessoas do seu tempo e pelos séculos afora? Faziam cestos num dia, e no outro os desmanchavam!!! Isto mostra que a grandeza do monge e da monja não está nas suas obras, mas em Deus a quem buscam. Sua obra maior é a sua própria busca, que lembra aos homens e mulheres de todas as épocas, que Deus é, na verdade, a sua busca mais profunda, a única busca que subsiste e se esconde em todas as suas buscas mais intensas: "Fizeste-nos para Vós, ó Senhor, e o nosso coração anda inquieto enquanto não descansar em Vós" (Santo Agostinho).
Fizestes-nos para Vós, fizestes-nos para a contemplação
Jesus mesmo revelou que o Pai trabalha sempre[6]. Mas à medida que trabalha, Ele também contempla[7]. E quanto ao homem, obra feita pelas suas próprias mãos artesanais (cf. Gn 2,7), Ele não se contenta e até se inclina para contemplar: "Dos altos céus o Senhor olha e observa; ele se inclina para olhar todos os homens" (Sl 32,13).
É esta harmonia da contemplação o habitat natural do ser humano. Antes do pecado, quando era plenamente o que deveria ser, o homem e a mulher passeavam com Deus e ambos, o Criador e a criatura, se contemplavam mutuamente. O homem e a mulher não se escondiam e se deixavam ver por Deus que olhava e se regozijava com a obra de suas mãos. Eles, por sua vez, só eram capazes de contemplar o lado bom de todas as coisas: não tinham comido da árvore do conhecimento do bem e do mal, e assim, não conheciam na "própria pele" o mal. Tudo era harmonia nos relacionamentos: com Deus, entre homem e mulher, entre o ser humano e as outras criaturas.
Pela contemplação, hoje também, o homem e a mulher são chamados a reencontrar a harmonia. Até mesmo longe da esfera do sagrado ou do católico cristão vem se fortalecendo a proposta da meditação como terapia. E como nossa sociedade, um tanto louca e esquizofrênica, precisa deste espaço e situação de silêncio, de encontro consigo mesmo, de discernimento e avaliação, de escuta mais profunda das situações da vida! O Papa na "Laudato Si" lembra aos homens e mulheres do nosso tempo a necessidade da contemplação como fator indispensável para um reequilíbrio holístico:
"Ninguém pode amadurecer numa sobriedade feliz, se não estiver em paz consigo mesmo. E parte duma adequada compreensão da espiritualidade consiste em alargar a nossa compreensão da paz, que é muito mais do que a ausência de guerra. A paz interior das pessoas tem muito a ver com o cuidado da ecologia e com o bem comum, porque, autenticamente vivida, reflete-se num equilibrado estilo de vida aliado com a capacidade de admiração que leva à profundidade da vida. A natureza está cheia de palavras de amor; mas, como poderemos ouvi-las no meio do ruído constante, da distração permanente e ansiosa, ou do culto da notoriedade? Muitas pessoas experimentam um desequilíbrio profundo, que as impele a fazer as coisas a toda a velocidade para se sentirem ocupadas, numa pressa constante que, por sua vez, as leva a atropelar tudo o que têm ao seu redor. Isto tem incidência no modo como se trata o ambiente. Uma ecologia integral exige que se dedique algum tempo para recuperar a harmonia serena com a criação, refletir sobre o nosso estilo de vida e os nossos ideais, contemplar o Criador, que vive entre nós e naquilo que nos rodeia e cuja presença «não precisa ser criada, mas descoberta, desvendada»".[8]
Contemplação: vocação última do ser humano
Mas se a vida contemplativa recorda ao ser humano a sua vocação primeira, elemento essencial do seu "Ontos", a Igreja sempre a "cantou" como sinal da vocação futura de todos:
"A presença de comunidades colocadas como cidades no cimo do monte e candeias sobre o candelabro (cf. Mt 5, 14-15), mesmo na sua simplicidade de vida, representam visivelmente a meta para onde caminha a comunidade eclesial inteira, que «avança pelas estradas do tempo com o olhar fixo na futura recapitulação de tudo em Cristo», preanunciando assim a glória celeste."[9]
Nos nosso dias, em meio à uma sociedade materialista e hedonista, o falar em céu ou inferno não possui mais o peso das pregações de outrora. O imediatismo do ser feliz, aqui e agora e a qualquer custo, torna inócuo um olhar transcendente rumo ao futuro, nossa meta final.
Mas algo intrínseco ao ser humano é o desejo de viver para sempre. Distraído e iludido entre os brilhos do passageiro, diante do sofrimento e a morte, o homem e a mulher se negam a aceitar o fim. Distanciando do cristianismo, não é por menos que hoje cresce assustadoramente a busca por livros espíritas...
Certamente, neste nosso tempo, vidas empenhadas em começar na terra o louvor a Deus que se viverá eternamente no céu, não significam nada para a sociedade. Mas se a fé é a posse de realidades que não se vêem (cf. Hb 11,1), os contemplativos e contemplativas com sua existência moldada por uma busca incessante do eterno, revelam aos seus contemporâneos a transitoriedade de todas as coisas. Uma ilusão é incapaz de sustentar uma vida inteira que se esvazia constantemente em busca do essencial! A fé, para além de virtude e empenho pessoal, é dom daquEle que se revela no Mistério: um cão só permanece em sua busca porque sentiu o faro da presa. A alegria e o dinamismo que permeiam o "vazio" de nossos claustros revela, na simplicidade das nossas vidas, que Deus existe e é fascinante: é invisível, mas real, "tocável" numa realidade mística em que o insondável, nos sonda pelas grades do sensível. A nossa esperança está cheia de imortalidade![10] Mas tudo na simplicidade da fé, pois o que for a mais, é digno de um bife, como lembrou o Papa Francisco às contemplativas em Assis [11].
A fé para quem não a tem é loucura, irracionalidade. Em meio a uma sociedade e cultura existencialista, materialista e hedonista apostar tanto na vida eterna pode soar como "ópio", desperdício e paranóia. Mas na fé confessamos com Dostoievski:
"Creio que não existe nada de mais belo, de mais profundo, de mais simpático, de mais viril e de mais perfeito do que o Cristo; e eu o digo a mim mesmo, com um amor cioso, que não existe e não pode existir. Mais do que isto: se alguém me provar que o Cristo está fora da verdade e que esta não se acha n'Ele, prefiro ficar com o Cristo a ficar com a verdade."[12]
Apostar na esperança é livrar-se do cinismo do caos.
Contemplação e Revolução
Mas seria a contemplação tão inútil assim aos olhos do mundo?
Hoje se fala tanto em marketing: para se lançar um novo produto faz-se inúmeras pesquisas, estudos para saber o que agrada as pessoas, o que se tem necessidade, etc. Tanta aplicação remonta: ver, escutar, discernir, analisar com profundidade - características bem próprias de um contemplativo. A diferença é que o contemplativo não vê, ouve e sente com os olhos do mercado, mas com os olhos de Deus. Ele procura ver os sinais da Sua presença divina em tudo, principalmente nos acontecimentos da história.
Arrisco-me a dizer que, cada revolucionário tem algo de místico, pois só isto justifica a capacidade de atrair companheiros à sua volta: místico é como coelho!! Infelizmente, manchadas pelo pecado humano que tudo estraga, grandes revoluções iniciadas por pessoas de visão, capazes de sonhar com um mundo melhor, não chegaram a parir o algo novo que o seu olhar concebeu. Cristo, com o anúncio do Reino em palavras, atos e o seu próprio Ser, também espera que nós cristãos, livremos o seu anúncio de toda sombra de pecado, para que a libertação integral aconteça: "Eu vim para que todos tenham vida" (Jo 10,10).
Mas, nossos fundadores não foram também homens e mulheres de profunda contemplação que fez deles semeadores de uma nova esperança, "revolucionários" ativos do Reino de Deus? O que não pensar de um Santo Antão, São Bento, São Francisco, São Domingos, Sto. Inácio de Loyola, São Vicente de Paulo, Santa Teresa de Jesus, Charles de Foucauld, Léon Dehon, Dom Bosco, Teresa de Calcutá? Isto só para falar dos mais conhecidos. Cada fundador e fundadora, na intimidade da sua experiência mística, fecundam com o Espírito Santo um gérmen novo para transformar, revolucionar o mundo com o amor.
A contemplação é, então, o ventre fecundo da concepção das transformações que o nosso mundo precisa. Contemplar o projeto de Deus de vida plena para todos, mas simultaneamente contemplar o mundo, a carne de Cristo que sofre nos empobrecidos, nos famintos, nos toxidependentes, nas mulheres e crianças exploradas, etc.; ouvir a terra que geme em dores de agonia... Contemplar o futuro, o presente, mas também o passado, a história, para aprender as lições da vida, aprender dos próprios erros. Contemplar, meditar, ruminar - palavra tão própria dos orantes - para engendrar o novo.
Ruminar: vocação de gado?
"Eh, ôô, vida de gado: Povo marcado, ê, Povo feliz" (Zé Ramalho).
A expressão vida de gado se tornou metáfora para indicar um povo que caminha em massa sem discernimento, à vontade opressora de quem a conduz. Mas bem que poderíamos dar um sentido diferente à música de Zé Ramalho.
Numa sociedade superficial, devoradora de informações, a atitude de ruminar tem muito a nos ensinar. Ruminar, metaforicamente é: raciocinar, discorrer, cuidar, cogitar, cismar, considerar, ponderar, pensar, meditar, matutar, refletir.
A contemplação, portanto, no campo da espiritualidade se aproxima desta atitude de rever, recordar, saborear novamente para perceber os sinais da presença ou ausência do Reino de Deus na vida e na história. Ruminar, justamente para não se tornar "mulas encabestradas" por ideologias que querem eliminar o plano de plena salvação de Deus para o mundo. Sem isto vamos perdendo a nossa identidade, tornando-nos o que a mídia pensa e expressa.
"O ser humano se torna aquilo que come" [13]. Isto vale para a Eucaristia, mas também, infelizmente, para as ideologias. O ruminar as informações antes de ingeri-las nos permite assimilar com critério só o que contribui para a vida.
Mas não é de hoje que os irracionais nos ensinam sabedoria. A mula de Balão vê o invisível e faz do próprio dono "um homem de olhar penetrante, que cai em êxtase e seus olhos se abrem" para ver a presença de Deus no meio do povo; um contemplativo capaz de abençoar, com os olhos que vêem com benevolência (cf. Nm 22-24).
Um olhar de bênção e misericórdia
"Vede que injúrias, que sofrimentos padece por nós o Salvador, esmagado sob o peso da Cruz! Contemplai como sofre por nosso amor o Filho de Deus, o Redentor do mundo." (S. Paulo da Cruz).
Mas seria o contemplativo um ser elevado em seu camarote-mosteiro que vive no ópio da contemplação apenas das realidades boas, bonitas e agradáveis aos olhos e à consciência? Se assim for, o contemplativo é um E.T. (extra terrestre) e um E.C. (extra celeste): não serve nem para a terra, nem para o céu. Os claustros dos nossos Mosteiros, na fidelidade da sua vocação, estão longe de ser grades e muros de condomínio que afastam as pessoas do contato com a miséria humana. Querem, ao contrário, ser janelas e torres que permitem olhar longe num olhar compassivo, que abraça a terra inteira na profundidade das suas "dores, alegrias e esperanças" (cf. GS 1).[14]
Certamente o mundo questiona a nossa inutilidade, porque "olhamos e não fazemos nada...". Santa Teresinha, uma das mentes mais brilhantes em suas imagens, se percebia como um pequeno pássaro impotente para voar como as águias, mas que, no entanto, delas possuía os grandes olhos. Pequeno, inútil ou não, o contemplativo tem olhos de águia para olhar fundo para o mundo, para as pessoas, principalmente em sua dor; e, ao mesmo tempo, olhar fundo para o Senhor e implorar misericórdia para si e seus irmãos:
"Nossos olhos estão fitos no Senhor, até que Ele tenha pena de seus servos" (Sl 122).
"Tu me arrebataste o coração, minha irmã e minha noiva,
com um só dos teus olhares" (Ct 4,9).
É este olhar compassivo para com a humanidade de Cristo que sofre nos que sofrem, que transforma o contemplativo em um orante-intercessor, mais humano, mais sensível e, até mesmo, mais maduro.
"Há lágrimas para consolar no rosto de Deus, quando chora pela miséria dos seus filhos" (Etty Hillesum).
As estórias da nossa infância trazem na sua candura, lições de vida que não se esquece. Lembro-me daquela da garrinchinha, pequeno pássaro, toda agitada em seus ideais: "Não sei o que é que eu faço para derrubar a igreja no chão" (era assim que meu avô entendia o seu canto). O tiú preguiçoso, que só queria dormir, quebrou um pedaço de pau no ouvido para não escutar o seu canto, e por isso ficou surdo para sempre.
Contemplar para gerar consciência, gerar indignação, gerar profecia, gerar intercessão-compassiva, e até mesmo o dom das lágrimas de quem chora com quem chora. Contemplar para não ficar surdo e cego aos irmãos que sofrem:
"Existe algo mais poderoso do que os argumentos, os sinais ou até a oração. São as lágrimas, e as lágrimas serão ouvidas como nenhuma outra coisa." [15]
Parafraseando Dom Hélder, para que nos tornemos orantes melhores é preciso que Lázaro entre em nossa oração também, provoque desconcerto, inquietação, incomode nossa consciência, lembre-nos do Cristo crucificado nos que sofrem.
"Pelo Amor que tenho aos ricos - a quem não devo julgar a quem não posso julgar
e que custaram o sangue de Cristo -
eu te peço, Lázaro, não fiques nas escadas e não te deixes enxotar...
Irrompe banquete adentro.Vai provocar náuseas nos saciados convivas.
Vai levar-lhes a face desfigurada de Cristo de que tanto precisam
sem saber e sem crer..."[16]
Conclusão
Como monja contemplativa, todo este artigo pode soar como apologia em defesa da própria classe. Não podemos negar que a inquietação do mundo e principalmente da Igreja por causa da inutilidade dos Monges e Monjas não nos é indiferente. Mas não deveria ser.
Somos contemplativos e isto é a nossa essência: as outras coisas vêm por acréscimo. O desaparecer no anonimato da solidão claustral não é risco de profissão, mas parte integrante do nosso caminho vocacional. Como participante da condição humana, marcado também pelo desejo de "ser", o seguimento de Cristo feito pelo contemplativo, o mergulha na Kénosis do Mestre, para, no esvaziamento de tudo, torná-lo mais livre, feliz e confiante.
"A humildade desapega o monge daquela absorção em si mesmo que o faz esquecer-se da realidade de Deus. Desapega-o daquela fixação em sua própria vontade que o faz ignorar e desobedecer à vontade eterna de Deus, única realidade a ser encontrada. Destrói aos poucos o edifício de projetos ilusórios que o monge levantou entre si mesmo e a realidade. Despe-o da veste dos ideais espúrios que ele teceu para disfarçar e embelezar seu ser imaginário. Encontra-o, e o salva, no meio de um conflito sem fim com o resto do universo - salva-o, nesse conflito, por um salutar 'desespero' em que renuncia, enfim, à luta inútil, para fazer-se um 'deus'. Quando atinge esta renúncia final, mergulha através do centro da sua humildade para achar-se, enfim, no Deus vivo".[17]
O "famoso" matrimônio espiritual, cume da vida mística, não é outra coisa que chegar ao "já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim" (Gl 2,20). E este "desaparecer" é apenas uma fase do itinerário do esconder a própria vida com Cristo em Deus (cf. Cl 3,3).
"Era uma vez um boneco de sal. Após peregrinar por terras candentes e áridas, chegou a descobrir o mar que jamais vira e por isso não podia compreender. Perguntou o boneco de sal: 'Quem és tu?' - 'Eu sou o mar!' Tornou o boneco de sal: 'Mas que é o mar?' O mar respondeu: 'Sou eu!' 'Não entendo' - disse o boneco de sal. 'Como poderia compreender-te, porque gostaria muito?' O mar respondeu: 'Toca-me!' Então o boneco de sal, timidamente, tocou o mar com as pontas dos dedos do pé. Percebeu que aquilo começou a ser compreensível. Mas logo deu-se conta: 'Vê só: desapareceram as pontas de meus pés?! Que me fizeste, ó mar?' O mar responde: 'Tu deste alguma coisa para que pudesses me compreender.' E o boneco de sal começou a entrar lentamente no mar, solene e devagar, como quem vai fazer o ato mais importante de sua vida. Na medida em que entrava, ia se diluindo. E nesta mesma medida tinha a impressão de conhecer mais e mais o que é o mar. O boneco ia repetindo de si para consigo mesmo a pergunta: 'Que é o mar?' Até que uma onda tragou totalmente o boneco de sal. E ele pôde ainda dizer, no momento de ser diluído pelo mar: 'Sou eu!'."[18]
Só a Deus todo louvor, toda honra, toda glória, desde agora e para sempre!


Para ajudar a refletir:

  • Como discípulo- missionário qual espaço reservo em minha vida para a escuta do Mestre em oração?
  • A minha oração-contemplação é fator de transformação pessoal e, através de mim, do meu ambiente?
  • Minha oração é espaço de discernimento para reavaliar à luz do Evangelho, as informações recebidas do externo?
  • Como estabelecer um equilíbrio entre contemplação-oração e uso das novas mídias?

[1] Para gostar de ler, Vol I -Crônicas .

https://www.aridesa.com.br/servicos/click_professor/aline_duarte/notas_de_aula/padeiro.pdf

[2] Vida Silenciosa, Prólogo

[3] https://cleofas.com.br/os-monges-e-os-mosteiros/

[4] Regras e Constituições das Monjas Passionistas.

[5] "Desde as mãos que amassam a farinha até as que consagram o pão, a grande hóstia universal somente deveria ser preparada e manipulada com adoração" (Teilhard de Chardin, Meio Divino).

[6] Jo 5,19): " O meu Pai até agora está trabalhando, e eu também estou trabalhando".

[7] Gn 1, 4.10.12.18.21.31: "Deus viu tudo o que havia feito. Eis que era muito bom" .

[8] Laudato Si, 225

[9] Vultum Dei Quaerere, 2. Ver também Verbi Sponsa, 4; Venite Seorsum V.

[10] Cf. Sb 3,4

[11] "E este é o vosso caminho: não demasiado espiritual! Quando as religiosas são demasiado espirituais... Penso na fundadora dos mosteiros da vossa concorrência, por exemplo, Santa Teresa. Quando uma irmã ia ter com ela, oh, com coisas (demasiado espirituais), dizia à cozinheira: «Dá-lhe um bife!»" Assis, 4 de outubro de 2013.

[12] Credo redigido por Dostoievski à baronesa Von Wizine.

[13] Ludwig Feuerbach (1804 - 1872) filósofo alemão e Alexandre Schmemann (1921-1983) teólogo ortodoxo.

[14] Gaudiun et Spes, 1: "As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração".

[15] Maria Clara Bingemer, Conferência "Il Dio che piange. Il dolore, la sofferenza, Il lamento delle donne e l'amorosa solidarietà di Dio", Roma 2017.

[16] Dom Helder,"Mil razões para viver".

[17] Thomas Merton, A vida Silenciosa

[18] Leonardo Boff, Vida segundo o Espírito.

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